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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Estadão 22/09 - - Autocombustão

Dora Kramer

O desfile triunfante do governador Pedro Paulo Dias pelas ruas de Macapá ao deixar a cadeia e o discurso do presidente Luiz Inácio da Silva acusando a imprensa de destilar "ódio e mentiras" enquanto os fatos mostram violação de sigilo fiscal, corrupção e nepotismo no governo são partes de um todo.
E qual é esse todo? É a transposição da verdade em mentira e vice-versa, da vergonha em orgulho, da acusação em defesa, da razão para comemorar em motivação para a fúria, do presidente da República em cabo eleitoral, da volta de Lula ao patamar de origem.

Deixa a Presidência menor do que quando chegou, dando margem a que se conclua que quem nasceu para sindicalista nunca chega a estadista.

E isso em nome de quê?

Pelo que se vê dos atos do presidente, pela desconstrução que faz do próprio símbolo do lutador, do vencedor, do democrata, do fundador do partido renovador, do exterminador de corruptos, o mais importante para ele é a disputa da hora.

Por isso não leva em conta o passado nem se preocupa com os efeitos futuros: interessa o aqui e o agora. E agora só o que importa é eleger Dilma Rousseff no primeiro turno.

Se o País retrocede institucionalmente, se o presidente perde prestígio e respeitabilidade, se a democracia é ferida, nada disso é visto. Só se enxerga a construção de uma vitória grandiosa.

Maior que as duas anteriores, pois Lula terá criado um ser eleitoral do nada e conseguido impor uma derrota avassaladora ao adversário que se preparou a vida toda para ser presidente.

A possibilidade de que as coisas não saiam exatamente como o sonhado e o empenho para que saiam a contento parecem para Lula valer o risco de pôr a perder a parte mais sólida de seu patrimônio: a imagem construída ao longo dos últimos 30 anos.

Quando demonstra desapreço pela democracia na política externa, o presidente sempre pode recorrer à desculpa de que não se imiscui na política dos países. Ainda que ditaduras.

Mas quando faz o mesmo no país que governa, mas cuja Constituição desrespeita no tocante à liberdade de imprensa e na obrigação de ser impessoal no cargo, não há disfarce possível e acaba por contrariar os próprios interesses.

Lula quer manipular a realidade jogando ao mesmo tempo para dois públicos: o informado, que exige punições; e o não-informado que acredita quando diz que a imprensa mente e o persegue.

Não aceita jogar na regra, parte pra cima, como no sindicalismo, mas o problema é que ao fazer isso acaba se revelando manipulador e truculento à vista de todos.

Não que Lula seja diferente do que sempre foi: ao contrário, está mais igual do que nunca. Quando na oposição nunca carregou com distinção as derrotas nem conviveu bem com as críticas.

De jornalista para político, conversas com ele que não fossem de concordância ou admiração eram conversas difíceis. Dos tempos do sindicato às candidaturas presidenciais.

Não obstante as evidências, Lula sempre foi muito festejado, principalmente na imprensa, jamais se apontou nele qualquer traço autoritário.

Mesmo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que o conhece muito bem, em 2002 acreditou que teria a biografia enriquecida com o fato de o sucessor ser "um líder operário que chegou a presidente", sendo recebido pelo antecessor derrotado com todas as fidalguias de uma transição civilizada.

Fato é que independentemente da realidade, a imagem de Lula aqui e no exterior para a maioria sempre foi das melhores. E não falamos da maioria de triste destino que de tão carente não precisa de muito para adotar um salvador.

Lula sempre privou da maior respeitabilidade entre bem estudados, bem nascidos, bem alimentados e bem vestidos. Notadamente aqueles com acesso ou com assento nos meios de comunicação. Foi aí que se originou o mito.

E é por aí também que se desmistificam as imposturas.

Uma ou outra. Não dá para a Ordem dos Advogados do Brasil ao mesmo tempo defender a liberdade de imprensa e pedir a interdição de uma obra na Bienal. Questão de princípio.

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