Esse é um blog de Clipping de Miguel do Rosário, cujo blog oficial é o Óleo do Diabo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Tocqueville e a revolução

Eis o prometido trecho do livro mencionado no início do post, páginas 226 a 229. A editora é Martins Fontes 2009, 1ª edição, com tradução de Rosemary Costehek Abílio (com um ou outro ajustezinho meu). Vive la France!


O contraste entre a benignidade das teorias e a violência dos atos, que foi uma das características mais estranhas da Revolução Francesa, não surpreenderá ninguém que levar em conta que essa revolução foi preparada pelas classes mais civilizadas da nação e executada pelas mais incultas e rudes. Como os homens das primeiras não tinham entre si nenhum laço preexistente, nenhum hábito de se ouvirem, nenhuma ascendência sobre o povo, este se tornou quase de imediato o poder dirigente, assim que os antigos poderes foram destruídos. Onde não governou por si mesmo, deu pelo menos seu espírito ao governo; e quem, por outro lado, pensar na maneira como esse povo vivera sob o Antigo Regime, não terá dificuldade em imaginar o que ele ia ser.

As próprias particularidades de sua condição haviam lhe dado várias virtudes raras. Libertado cedo e há muito tempo proprietário de uma parte do solo, mais isolado do que dependente, ele se mostrara comedido e altivo; era habituado ao sofrimento, indiferente às delicadezas da vida, resignado nos maiores maiores, firme no perigo; raça simples e viril que vai guarnecer aqueles poderosos exércitos sob cuja força a Europa se curvará. Mas a mesma causa fazia dele um senhor perigoso. Como durante séculos carregara quase sozinho todo o fardo dos abusos; como vivera apartado, alimentando-se em silêncio de seus preconceitos, invejas e ódios, calejara-se nesses rigores de seu destino e tornara-se capaz ao mesmo tempo de tudo suportar e tudo fazer sofrer.

É nesse estado que, apoderando-se do governo, ele se dispôs a concluir pessoalmente a obra da Revolução. Os livros haviam fornecido a teoria; ele se encarregou da prática e ajustou as ideias dos escritores a seus próprios furores.

Os que, lendo este livro, estudaram atentamente a França no século XVIII, puderam ver nascer e desenvolver-se em seu seio duas paixões principais, que não foram contemporâneas e nem sempre tenderam para o mesmo objetivo.

Uma, mais profunda e vinda de mais longe, é o ódio violento e inextinguível pela desigualdade. Ele nascera e alimentara-se da visão dessa mesma desigualdade e desde muito tempo impelia os franceses, com uma força contínua e irresistível, a querer destruir até as bases tudo o que restava das instituições medievais e, esvaziando o terreno, construir nele uma sociedade em que os homens fossem tão semelhantes e as condições tão iguais quanto a humanidade comporta.
A outra, mais recente e menos enraizada, levava-os a desejar viver não apenas iguais, mas livres.

Por volta do final do Antigo Regime essas duas paixões são tão sinceras e parecem tão vivas uma quanto a outra. Às portas da Revolução elas se encontram; então se misturam e se confundem por um momento, aquecem-se mutuamente no contato e por fim incendeiam ao mesmo tempo todo o coração da França. É 1789, tempo de inexperiência realmente, mas de generosidade, entusiasmo, virilidade e grandeza, tempo de imortal memória, para o qual se voltarão com admiração e respeito os olhares dos homens, quando aqueles que o viram e nós mesmos tivermos desaparecido há muito.

Então os franceses ficaram suficientemente orgulhosos de sua causa e de si mesmos para acreditar que podiam ser iguais na liberdade. Assim, no meio das instituições democráticas colocaram em toda parte instituições livres. Não apenas reduziram a pó aquela legislação antiquada que dividia os homens em castas, em corporações, em classes e tornava seus direitos mais desiguais ainda que suas condições, como também destruíram de um só golpe aquelas outras leis, obras mais recentes do poder régio, que haviam tirado da nação a livre disposição de si mesma e colocado ao lado de cada francês o governo, para ser seu preceptor, seu tutor e, se necessário, seu opressor. Com o governo absoluto também caiu a centralização caiu.

Mas, quando essa geração vigorosa, que começara a Revolução, foi suprimida ou desfibrada, como costuma acontecer a toda geração que enceta esses empreendimentos; quando, seguindo o curso natural dos acontecimentos dessa espécie, o amor à liberdade desencorajou-se e arrefeceu em meio à anarquia e à ditadura popular, e a nação desnorteada começou a procurar como que às apalpadelas seu senhor, o governo absoluto encontrou facilidades prodigiosas para renascer e firmar-se, as quais foram descobertas e usadas sem dificuldade pelo gênio daquele que ia ser simultaneamente o continuador da Revolução e seu destruidor [ou seja, Napoleão].
De fato, o Antigo Regime tivera todo um conjunto de instituições recentes que, não sendo hostis à igualdade, podiam facilmente ocupar um lugar na sociedade nova e que entretanto ofereciam ao despotismo facilidades únicas. Procuraram-nas no meio dos escombros de todas as outras e encontraram-nas. Outrora essas instituições tinham gerado hábitos, paixões, ideias que tendiam a manter os homens divididos e obedientes; reavivaram esta e valeram-se dela. Recuperaram a centralização em suas ruínas e restauraram-na; e como, ao mesmo tempo que ela se reerguia, tudo o que anteriormente pudera limitá-la ficava destruído, das próprias entranhas de uma nação que acabava de derrubar a realeza viu-se sair subitamente um poder mais extenso, mais detalhado, mais absoluto do que o que fora exercido por qualquer de nossos reis. O empreendimento pareceu de uma temeridade extraordinária e seu sucesso, inaudito, porque pensavam apenas o que viam e esqueciam o que haviam visto. O dominador caiu, mas o que havia de mais substancial em sua obra permaneceu de pé; morto seu governo, sua administração continuou a viver; e desde então, toda vez que se quis derrubar o poder absoluto, não se fez mais que colocar a cabeça da Liberdade em um corpo servil.

Várias vezes, desde que a Revolução começou até nossos dias, temos visto a paixão pela liberdade extinguir-se, depois renascer, depois extinguir-se novamente e depois novamente renascer; assim fará por muito tempo, sempre inexperiente e mal regulada, fácil de desencorajar, de assustar e de vencer, superficial e passageira. Durante esse tempo a paixão pela igualdade continua a ocupar o fundo dos corações dos quais foi a primeira a apossar-se e onde se agarra aos sentimentos que nos são mais caros; enquanto uma muda continuamente de aspecto, míngua, cresce, fortalece-se e debilita-se de acordo com os acontecimentos, a outra continua a mesma, sempre apegada ao mesmo objetivo com o mesmo ardor obstinado e frequentemente cego, disposta a tudo sacrificar àqueles que lhe permitem satisfazer-se e a fornecer ao governo que quiser favorecê-la e afagá-la os hábitos, as ideias, as leis de que o despotismo necessita para reinar.

A Revolução Francesa não será mais que trevas para aqueles que quiserem olhar apenas para ela; é nos tempos que a precedem que se deve procurar a única luz que pode aclará-la. Sem uma visão nítida da antiga sociedade, de suas leis, de seus vícios, preconceitos, misérias, de sua grandeza, jamais se compreenderá o que os franceses fizeram no decurso dos sessenta anos seguintes à sua queda; mas essa visão ainda não bastaria a quem não se aprofundasse até a própria índole de nossa nação.

Quando considero esta nação em si mesma, acho-a mais extraordinária do que qualquer dos eventos de sua história. Terá jamais surgido na Terra uma única que fosse tão cheia de contrastes e tão extremada em cada um de seus atos, mais conduzida por sensações, menos por princípios; fazendo assim assim sempre pior ou melhor do que se esperava, ora abaixo do nível comum da humanidade ora muito acima; um povo tão inalterável em seus principais instintos que ainda é reconhecível em retratos feitos dele há dois ou três mil anos, e ao mesmo tempo tão variável em seus pensamentos cotidianos e em seus gostos que acaba se tornando um espetáculo inesperado até para si mesmo e frequentemente fica tão surpreso quanto os estrangeiros ao ver o que acaba de fazer; o mais caseiro e de todos o mais fiel à rotina quando o deixam entregue a si mesmo e, no momento em que o arrancarem a contragosto de sua morada e de seus hábitos, disposto a avançar até o extremo do mundo e a tudo ousar; indócil por temperamento e no entanto se adaptando melhor ao império arbitrário e mesmo violento de um principe do que ao governo regular e livre dos principais cidadãos; hoje inimigo declarado de toda obediência, amanhã pondo no servir uma espécie de paixão que as nações mais dotadas para a servidão não podem alcançar; conduzido por um fio enquanto ninguém resiste, ingovernável tão logo o exemplo da resistência é dado em algum lugar; sempre enganando assim seus senhores, que o temem demais ou não o bastante; nunca tão livre que se deva desesperar de subjugá-lo nem tão subjugado que não possa vir a romper o jugo; apto para tudo mas excelente apenas na guerra; adorador do risco, da força, do sucesso, do brilho e do alarde, mais que da verdadeira glória; mais capaz de heroísmo que de virtude, de genialidade que de bom senso, mais inclinado a conceber imensos projetos do que a levar a cabo grandes empreendimentos; a mais brilhante e a mais perigosa entre as nações da Europa, e a mais dotada para tornar-se sucessivamente um objeto de admiração, de ódio, de piedade, de terror, porém nunca de indiferença?

Apenas ela podia gerar uma revolução tão súbita, tão radical, tão impetuosa em seu curso e no entanto tão cheia de reviravoltas, de fatos contraditórios e de exemplos opostos. Sem as razões que mencionei, os franceses nunca a teriam feito; mas é preciso reconhecer que todas essas razões juntas não teriam vingado para explicar uma revolução como essa em outro lugar que não a França.