Dois navios, separados por mais de seis décadas, iluminam o dilema que atormenta Israel. No dia 22 de junho de 1948, por ordem de David Ben-Gurion, chefe do governo provisório de Israel, as Forças Armadas do novo Estado bombardearam o cargueiro Altalena ao largo de Tel-Aviv. A embarcação transportava armas e soldados do Irgun, uma organização paramilitar sionista que se notabilizara pelo recurso ao terrorismo. Dias atrás, sob ordens do governo de Benjamin Netanyahu, comandos israelenses abordaram o navio turco Mavi Marmara, matando nove ativistas de uma flotilha que pretendia desafiar o bloqueio imposto à Faixa de Gaza. O Altalena ardeu para simbolizar a adesão do Estado judeu à lei das nações. A invasão do Mavi Marmara simboliza a aversão de Israel à lei das nações.
A flotilha atacada encontrava-se em águas internacionais, ao largo da costa de Gaza. Sob qualquer ângulo de análise, a ação israelense equivale a um ato de pirataria. A ordem de abordagem e o método utilizado provocaram um previsível desfecho trágico. A ação municiou o inimigo Irã, arruinou as relações com a aliada Turquia, decepcionou os países europeus e criou obstáculos suplementares para a política de Barack Obama. Na imprensa de Israel pipocaram acusações de incompetência do governo. Mais realista é concluir que Netanyahu agiu deliberadamente com a intenção de enviar mensagens a dois destinatários. O primeiro-ministro alertava os ativistas sobre a sorte reservada aos que tentarem furar o bloqueio e explicava a Washington que Israel não negociará a sério com os palestinos sem a prévia anulação política do Hamas.
A narrativa oficial do episódio articulou-se em torno do álibi empregado incessantemente para sabotar as negociações de paz. "Nossos soldados encontraram um grupo radical que apoiou grupos terroristas internacionais e hoje apoia o grupo terrorista Hamas", afirmou Netanyahu. "Era um navio de ódio. Não era uma frota de paz, era uma frota de apoiadores do terror."
Os ativistas, de fato, vestiram uma iniciativa política com a fantasia útil da ajuda humanitária. Da flotilha, realmente, participavam indivíduos tão radicais quanto alguns ministros do governo israelense. As opiniões políticas deles, contudo, não são justificativa para matá-los. E crismá-los como filoterroristas apenas evidencia a profunda degeneração da linguagem empregada por Israel. O Hamas venceu as últimas eleições gerais palestinas. Seriam os palestinos uma nação filoterrorista?
A Al-Qaeda representa o terror em estado puro. O Hamas, nas palavras precisas do escritor israelense Amós Oz, "não é apenas uma organização terrorista", mas "uma ideia", ainda que "uma ideia desesperada e fanática" - como foi, aliás, no seu tempo, o Irgun. A organização fundamentalista islâmica tornou-se o leito por onde correm as águas de uma vertente do nacionalismo palestino. Quando Israel borra as distinções entre Al-Qaeda e Hamas, não está cometendo um erro acadêmico de avaliação, mas inscrevendo em pedra o princípio legitimador de uma estratégia de rejeição da paz. A difusão ilimitada do rótulo de "terrorista" a todos os que, em qualquer nível, cooperam com o Hamas funciona como passaporte para a violação sistemática das normas internacionais.
Os ativistas do Mavi Marmara, entre os quais se contavam inúmeros fanáticos antissemitas, tinham como alvo o bloqueio israelense à Faixa de Gaza. O bloqueio representa uma violação direta, até hoje impune, da Convenção de Genebra, que estabelece os direitos das populações civis em territórios ocupados. É um crime de guerra, nada menos que isso. A alegação de Netanyahu de que a medida se destina a evitar a criação de "um porto iraniano em Gaza" colide com o discurso oficial israelense dos últimos anos: desde 2007 Israel proclama sua decisão de asfixiar a Faixa de Gaza até a dissolução da administração do Hamas. Previsivelmente, cada ato do Estado judeu na direção dessa meta, inclusive a sangrenta operação militar deflagrada em dezembro de 2008 em Gaza, reforça a auréola de martírio e resistência que circunda a organização fundamentalista.
Israel precisa reconhecer que "não estamos sós nesta terra", escreveu Amós Oz. A constatação emergiu na hora da assinatura dos Acordos de Oslo de 1993, mas foi logo esquecida, sob o impacto da radicalização interna em Israel e de ciclos de atentados terroristas palestinos. O governo de Netanyahu é o fruto maduro dessa trágica amnésia, cujas raízes estão fincadas nas camadas profundas do sionismo. O nacionalismo judaico original enxergava na Palestina uma "terra sem povo" prometida a um "povo sem terra". Hoje os israelenses se enxergam como uma nação sitiada por terroristas e reivindicam para si mesmos uma cláusula de exceção nas normas que regulam as obrigações das potências ocupantes.
No belo Judaísmo para Todos, lançado há pouco, o sociólogo Bernardo Sorj diagnostica que a ocupação dos territórios palestinos ricocheteia sobre a sociedade israelense, provocando "deterioração moral" e "fragilização da democracia". Um sintoma dessa crise de valores se encontra na flacidez da crítica doméstica aos atos do atual governo, formado por um núcleo de ultranacionalistas intransigentes e recoberto pelo manto enganoso da coalizão com os trabalhistas. Tudo se passa como se os israelenses estivessem sozinhos não apenas na Palestina, mas no mundo.
Ben-Gurion bombardeou o Altalena para afirmar, na hora do batismo do Estado judeu, que Israel não seria um prolongamento do Irgun. A antiga organização terrorista está na raiz do Likud, o partido de Netanyahu. O ataque violento ao Mavi Marmara parece indicar que os líderes atuais de Israel não se conformaram com o destino do navio de seus predecessores. É como se dissessem que a História deve ser reescrita - e que, agora, os homens e as armas do Altalena já podem desembarcar em Tel-Aviv.
SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP.
Esse é um blog de Clipping de Miguel do Rosário, cujo blog oficial é o Óleo do Diabo.
quinta-feira, 10 de junho de 2010
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