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terça-feira, 5 de abril de 2011

Política externa mudou, diz Garcia



"Claro que há mudanças na política externa"
Autor(es): Roberto Simon

O Estado de S. Paulo - 03/04/2011


O assessor para assuntos internacionais do Planalto, Marco Aurélio Garcia, admitiu a Roberto Simon que o governo Dilma mudou a política externa. Segundo ele, diferentemente do presidente Lula, Dilma tem uma percepção do mundo voltada aos direitos humanos: "Ela enfatiza questões ligadas a seu passado de presa política". Garcia, porém, nega que Lula tenha tido simpatia por autocratas.

Entrevista: Marco Aurélio Garcia

Visão de Dilma sobre direitos humanos e novo cenário internacional alteram diplomacia, reconhece Garcia; "Brasil não tem simpatia por autocratas nem afinidade com Irã"

Se o Itamaraty ainda hesita em admitir publicamente, o assessor para assuntos internacionais do Planalto, Marco Aurélio Garcia, entrega de bandeja: "Há mudanças na política externa? Claro que sim". Ele afirma que a presidente Dilma Rousseff está decidida a imprimir sua marca na diplomacia - a começar pela questão dos direitos humanos, particularmente cara à ela - e o contexto internacional mudou.

Com a transição entre governos, o próprio Garcia parece ter recalibrado o discurso. O Brasil "não tem simpatia por autocratas", diz, e "nenhuma afinidade com o Irã". Olhando para o passado, porém, ele defende que os abraços de Lula no líbio Muamar Kadafi ou no sírio Bashar Assad não são motivos de constrangimento. O "professor", como é chamado, subiu ainda o tom das críticas à intervenção na Líbia, um "precedente autorizando, sempre que houver uma guerra civil, a ONU a interferir em proveito de uma força". A seguir, a entrevista.

Há indícios - entre eles o voto do Brasil na ONU pelo envio de um relator ao Irã - de que a política externa está tomando um novo caminho. Qual é a dimensão dessa mudança?

Primeiro, é preciso falar sobre o voto em si. Já havia iniciativas do governo Lula nessa área e, diante de denúncias, nós votamos simplesmente pela criação de um relator. Caberá a ele definir em seu informe qual é a situação encontrada e, então, nós teremos de nos manifestar.

Há mudanças na política externa brasileira? Claro que sim. Elas são determinadas não só pelas alterações na realidade internacional, mas também pela diferente percepção que a presidente tem em relação ao mundo. Não vou trabalhar com a ideia de diplomacia presidencial, mas as grandes decisões partem do presidente. Lula sempre deu grande ênfase às questões sociais. Dilma manterá essa sensibilidade do governo anterior, mas quer enfatizar as questões ligadas a seu passado de prisioneira política.

E isso significará, por exemplo, uma mudança na forma como o Brasil vota na ONU quando o assunto é direitos humanos?

Cada caso é um caso. É evidente que um exemplo já foi dado. Outros virão.

Ao contrário do que tem sido dito, não houve da parte do governo brasileiro leniência no que diz respeito aos direitos humanos. Mais de 90% das moções apresentadas no Conselho de Direitos Humanos da ONU tiveram voto positivo do Brasil. Nós temos a preocupação de que essas votações não sejam seletivas - apenas contra os países do sul - e possam abordar de forma equilibrada todas as situações.

O Brasil nunca votou contra Cuba e sempre votou contra Israel. Isso não é ser seletivo?

Nós teríamos de ver concretamente quais foram as moções apresentadas. Não posso comentar em aberto. Na própria entrevista da presidente ao Washington Post, que tem sido tão mencionada como um ponto de inflexão, ela dizia querer rever tanto a situação do Irã quanto a de Guantánamo. No caso do Irã, quem suscitou a questão da senhora Sakineh (Ashtiani, condenada a apedrejamento) foi o Lula. Quando estivemos em Teerã, concluímos um processo que levou à libertação da francesa Clotilde Reiss. Houve iniciativas do chanceler Celso Amorim em relação aos cineastas presos e à comunidade bahai. Trabalhamos numa outra clave, mas de maneira nenhuma há leniência.

Ao mesmo tempo, quando se pensa na relação com o Irã, é impossível esquecer a frase comparando opositores massacrados a torcedores frustrados.

Essa comparação foi em uma outra situação, na eleição. Eu invoco o que disse à época: "Acho muito positivo (o protesto nas ruas)". Essa era a avaliação da diplomacia brasileira. Positivo porque demonstra a vida política na sociedade iraniana.

E a brutalidade de um regime disposto a tudo para se manter no poder.

Sim, mas houve manifestações. Não tenho informações para dar ou não validade às eleições. Mais ainda, não temos nenhuma afinidade com o governo do Irã. Ele é religioso, nós somos uma república laica. Eles têm leis que condenamos. Mas o que nós fomos fazer no Irã naquele momento foi outra coisa: tentar frear um programa (nuclear) militar, permitindo uma solução negociada. As potências não aceitaram e optaram pelas sanções.

Em 2003, o Brasil ajudou a eleger a Líbia presidente da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Meses depois, Trípoli conseguiu, com apoio brasileiro, suspender da comissão a ONG Repórteres Sem Fronteiras, que havia protestado contra a eleição. Esse tipo de voto tem lugar no governo Dilma?

A presidente tem um critério definido para a questão de direitos humanos - o qual compartilho totalmente. Ela, pessoalmente, tem uma história muito vinculada à questão dos direitos humanos - foi presa política. E diz o seguinte: "Por fidelidade à minha história, serei intransigente quanto aos direitos humanos e à defesa das mulheres". Nisso aí, não há nenhuma posição idiossincrática.

Parece bem diferente de Lula, que não se importava em abraçar ditadores.

O presidente Lula tem seu estilo, diferente do apresentado por Dilma. Nunca ninguém observou o fato de que Lula chamava Bush de "companheiro". Não acredito que, do ponto de vista estrito, Bush pudesse ser qualificado de "companheiro". Mas são estilos. Da mesma forma que ele conviveu aqui com pessoas que vinham do "antigo regime" (ditadura militar), ele podia perfeitamente conviver com certas figuras internacionais. Quando se fizer a história da política externa do governo Lula, esse aspecto não terá caráter fundamental. O que há de fundamental - e continuará neste governo - é a boa relação com a América do Sul, América Latina, África, China, Índia, União Europeia e EUA.

Bom relacionamento com os EUA, mas com grandes atritos - bases na Colômbia, Irã, Honduras, Cuba, comércio...

E o que você queria? Que ficássemos silenciosos?

Constato um fato: houve atritos significativos na relação bilateral.

A relação com os EUA é boa, mas, como em todo relacionamento, tem áreas de aproximação e de conflito. Muitas das críticas vêm de um período em que bom relacionamento significava submissão. Como diz o Chico Buarque, era a época em que falávamos fino em Washington e grosso com o Paraguai e com a Bolívia. Isso acabou, agora falamos igual com todo o mundo.

Sobre a situação na Líbia, o Brasil pede ou não a saída de Kadafi?

Não. O Brasil não tem incorporado essa questão.

E como o sr. avalia a intervenção da Otan em território líbio?

Ao lado de Alemanha, Rússia, Índia e China - ou seja, de boa parte do Conselho de Segurança -, nós nos abstivemos na última votação porque estávamos antevendo que poderia haver problemas. Naquele dia, disse a um colega de um país do Conselho de Segurança que uma votação daquele tipo, primeiro, poderia abrir uma caixa de pandora na região e, segundo, criava um precedente gravíssimo, autorizando agora, sempre que houver uma guerra civil, que as Nações Unidas intervenham em proveito de uma força.

Se não fosse a ação militar, Kadafi teria tomado Benghazi, o que levaria a um massacre. O Brasil não fica numa posição confortável de criticar a intervenção sem propor uma forma concreta de evitar a tragédia?

Na mesma época da votação houve um massacre de cem pessoas na capital do Bahrein. As Nações Unidas saíram para proteger a população massacrada lá? Não temos nenhuma simpatia por Kadafi e por nenhum regime autocrático naquela região. As grandes potências, sim, têm simpatias. E têm revelado isso de forma muito enfática. Kadafi estava extremamente próximo das potências nos últimos tempos.

Lula chamou Kadafi de "meu amigo, meu chefe". Isso não é ter simpatia?

Nós não temos, posso lhe assegurar. Se tivéssemos, desenvolveríamos ações conjuntas com Kadafi. Uma vez ele me propôs a criação de uma espécie de Otan do Atlântico Sul. Disse-lhe: "Isso não está na nossa agenda, não vamos desenvolver". Claro que o Brasil tinha interesses econômicos na Líbia - inferiores aos da China, França, EUA e Grã-Bretanha. Mas tinha. Na verdade, a Otan interveio em uma guerra civil na Líbia. Agora está discutindo armar os rebeldes. Houve uma ação extremamente violenta, que acabou com o poder de fogo de Kadafi.

Seria melhor não ter essa intervenção e ficar diante de prejuízos humanos ao estilo Ruanda ou Darfur?

O Brasil não tem má consciência com os casos de Ruanda ou Darfur. Que os países que têm esse problema parem de tentar expiar isso pelo restante da vida. A Líbia, o Egito e todos os países da região têm direito a governos democráticos, com eleições e tudo. Fantástico. Mas a escolha desses governos deve ser resultante de um processo interno. O papel da comunidade internacional é assegurar que isso se faça sem violência. Agora, está se fazendo com violência. Será que o Iraque - com dezenas de milhares de mortos e com a brutal violação dos direitos humanos - não serviu de exemplo? Lá não morreram noventa e poucas pessoas, como no primeiro momento na Líbia.

Lula teve uma relação pessoal calorosa não só com Kadafi, mas com outros líderes da região que agora estão em apuros. É o caso do sírio Bashar Assad, que hoje ordena suas tropas a abrir fogo contra civis desarmados. Isso é motivo de constrangimento para o governo brasileiro?

Nossa "relação calorosa" com Bush é motivo de constrangimento? Da mesma forma que há um grupo que faz acusações gravíssimas contra o presidente Assad, há outro que responsabiliza os EUA por violações gravíssimas no Iraque. Procuramos desenvolver um diálogo com todas as forças políticas e nunca fizemos concessões - nas visitas que realizamos, não fomos celebrar o governo do Irã, da Líbia ou da Síria.

Há rumores de que, com a transição entre Lula e Dilma, o sr. perdeu espaço no governo.

Minha sala continua do mesmo tamanho (risos). Em novembro, havia um movimento quase consensual para que eu substituísse o ex-presidente argentino Néstor Kirchner como secretário-geral da Unasul. Vários governos haviam se manifestado nessa direção. Como a eleição (de Dilma) já havia ocorrido, eu expus à presidente a situação. Ela pediu que eu continuasse como assessor de política externa. Aceitei e aproveitei para solicitar uma estrutura maior. A presidente concordou.

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